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Category: Português

Minha História

O que foi que eu vivi,
o que foi que vi e não me lembro,
o que foi que senti e ainda sinto
que me confunde e aflige a alma
e que, por vezes, chega a parecer coisa sagrada,
mas sendo unicamente meu o trauma?

Por onde foi que eu passei que deixou em mim esse rastro de betume,
essa manta de névoa, esse filtro fosco
que afoga a luz, entorpece a visão e embaça o lume?

Quantas mortes presenciei, sofri ou causei,
quantas tragédias testemunhei, impotente e desgraçada,
e a quantas logrei escapar, traindo aqueles a quem amava?

É aflito o meu espírito, é nervoso e acovardado.
Se algo adquiri nesta vida, foi o dom da compaixão.
Mas a compaixão é destinada a outrem; a mim, não.

Quando Nos Encontrarmos…

Para Paola, em agosto de 1988

Deixa eu espalhar no chão a pele de urso
para nós duas. Sentar ali bem juntas na escuridão da sala,
e toda vez em que, acanhadas, nos sentirmos nuas,
fitar o fogo que crepita e estala.

Vamos ficar caladas quando não tivermos nada
a dizer. Vamos cometer essa ousadia,
a de nem sempre ter que responder. E toda a vez em que nos tentar a farsa,
fitar o fogo que nos aquece a face fria.

Não há nada de devastador ou doloroso
na verdadeira sintonia. Nada de obsceno, ou perigoso
na mais rendida intimidade. Tu me sabendo e eu a ti,
onde há nisso motivo para vergonha ou nojo?

Tu me sabendo e eu a ti – o que perdeste?
O que perdi? De que maneira nos tornamos fracas –
de que maneira se enfraquece aquele, que dá de si?
Fiquemos aqui as duas, fitando o fogo que respira e alastra.

Fremente

Eis-me aqui tremendo,
no estacionamento da alma —
fremente a máquina, maníaca a mente,
em vão clamando por calma.

É assim, e assim será sempre
para os que louvam a um deus inclemente:
atrás de mim, o silêncio,
e o silêncio, à minha frente.

A Última que Morre

Vai passar, essa dor.
Vai passar, porque tudo passa. Passa o amor, passa a alegria e passa a desgraça.
Mas quando é que passa a esperança, meu Deus?,
quando é que passa a esperança, que me atravanca e embaraça?
Quando é que passa essa mania minha
de dar murro
em ponta de faca?
Por que é que passa tudo, exceto a renitente velhaca?

Prece à Tecelã

Teias. Em toda parte, teias.
Fios com metros de comprimento. Tramas adesivas em que eu entro inteira.
Lá fora. Cá dentro. Redes invisíveis
entre selim e guidom,
entre telhado e arbusto.
Entre pia e espelho. De repente, um tênue véu
cobrindo a minha face; de súbito um bracelete brilhante
conjurado no braço nu.

Laboriosa aranha: Tenha a bondade de ir invernar.

O Ônibus da Madrugada

Madrugada, Maria,
lhe peguei na estação de mala na mão,
uma expressão de extra-terrestre no rosto de quem vai para São Paulo.
Burburinho de meio-dia na meia-noite dos forasteiros e dos desertores,
e você lá, Maria, com essa cara de lua cheia de sonhos.

Mala na mão; não quis pousá-la no chão imundo de cigarros e cuspidos.
Não quis olhar o mendigo enrolado em jornais. Circunspecta esperava o ônibus
da madrugada, que ia lhe levar para São Paulo.
Gente que chega e que parte, o bar da estação vive do café-com-leite
e do pão-com-manteiga que sustentam os forasteiros e os desertores.

E os desertores que voltam um dia,
quase feito forasteiros, Maria.

Duas Vinhas

Para Denise, em maio de 2018

Duas vinhas vinham,
à revelia de ambas,
ao longo do tempo alastrando-se
e através de continentes
furtivamente enlaçando-se,
formando fortes correntes.

Prece

Para Paulinho, década de 1980
Ouve a escuridão
no coração desse garoto. Escuta a prece afogada e surda, escuta
as avaras batidas. Ouve o silêncio hermético
que infesta esta negra câmara.

Vê que véu funesto cobre o olhar
desse garoto. Membrana rija e opaca,
foi um fungo qualquer de tristeza que proliferou ali.
Vê a rigidez impermeável deste branco véu.

Toma de suas mãos calosas, traze-as ao rosto
e diz: Acende essa câmara! Rasga esse véu!
Abre uma trilha no mato da ilha, garoto!

Traz sua cabeça ao peito e diz:
Areja essa câmara! Vara a membrana!
Abre!, abre uma trilha.

Incendiada

Ouvi dizer que você gosta de andar nua pelas ruas em noites de lua nova
cantarolando baixinho para não alertar as aves
e que, atingindo a borda do bosque, pisando macio na trilha,
você galga o velho carvalho e com suas folhas se cobre

Ouvi dizer que você foge do sol mas assedia, implacável, a alvorada
que despreza a noite e evita o dia e desabrocha só de madrugada
e que, não sendo daqui, vagueia por tortuosas sendas que conduzem, todas,
ao nada

Quem é você, de quem tanto ouço falar mas nunca consigo entrever?
Por que é que se esquiva quando eu tento lhe alcançar?
Por que não me confia parte de sua carga?

Ouvi dizer que você arde por dentro, em segredo, calada
enquanto que, perante o mundo, expõe sua face sombria
e que deixa, por onde passa, um rastro d’água,
camuflando assim sua condição
de incendiada

Quem é você, cujos sussurros me alarmam sem que eu entenda por quê?
Por que é que me assombra, se não deseja que eu vislumbre você?
Por que não me confia a chave da sua casa?

Hoje Eu Sou Meu Pai

Hoje eu sou meu pai, insone à meia noite.
Meu pai gostava da noite. Eu prefiro a alvorada.
Saí ao jardim e entrevi a lua, emaranhada num novelo de nuvens,
gritando calada, lançando fulgências de prata por entre as grades esfumaçadas.

Eu — só no jardim da meia-noite e na companhia de seres noturnos;
aqueles vultos calados que vivem e morrem no escuro. E da ventania, violenta e frívola,
e do rugir do mar.

Ultimato

Você não veio, veio
o seu ultimato. E eu lancei-me ao leito,
o ventre escorrendo, os olhos vazando,
os fluidos se misturando.
E foi assim
que o prazer deitou com a dor, o êxtase
com a mágoa. Amaram-se a raiva e o amor
e deram à luz um monstro abjeto; vingativo e voraz.

Custou para eu ficar saciada.
Além do que eu não fiquei.

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